segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Reconstruindo


Questões, (...) perguntas, dúvidas. São tantos, tantos vazios sem respostas que eu poderia deixar de viver, que o passarinho que canta poderia perder o afinado, o sol poderia virar lua, que o preto não desbotasse o branco, que... que mesmo assim o espaço debaixo da questão continuaria em branco. Conjunto vazio.
O sol bateu com um estrondo, impaciente, como se tivesse esperado muito tempo, mas isso não significava que ele sempre fora assim. Ele me esperou, esperou por dias incontáveis, dias que não quis viver. Durante esses dias, eu sei, eu tenho certeza... E que certeza é essa? De onde vem tanta convicção, tanta segurança no que diz, diz em palavras mudas, diz só pra si. Não sei, mas quis acreditar nessa falsa certeza, quis acreditar nesse talvez antes que perca a fé em tudo. Me convenci. Eu sabia que o sol tinha batido, insistido, lutado e grudado em minha janela como quem encosta o ouvido eriçado de curiosidade, a vontade de saber, decifrar, escutar o som que rola depois da porta.
Será que ele pensou que dessa eu não escaparia? Que me perderia na escuridão que dominava toda a extensão das minhas pálpebras fechadas, sem nenhum vestígio de imagem, de cor? Não. Tinha cor, a única cor, a cor do desespero, da beira do fio entre a lucidez e a loucura.
(...) Continuei parada na cama agitada pelos cobertores, lenços e papéis, rabiscos. Talvez fossem até cartas, cartas sem destinatário, sem rumo. Ou não. Ou mais, poderiam ser ditas. Ditos meus escritos involuntariamente inconscientes, apenas jogados, jorrando e deixando junto com o rio salgado que desaguava sobre a pele alva da folha, que absorvia gentilmente como um ombro, sendo amigo ou não, apenas um ombro, confortável, acolhedor, que aceitou receber as lágrimas pacientemente, sem se importar com a blusa molhada por causa dos soluços, sem se importar de usar a mão. (...) É preciso (...) que se disponha a afagar suas costas, passar a mão sobre seu rosto, te oferecer um lenço.
Me recusei a tentar decifrar as sílabas, juntá-las, uma por uma até que a  palavra seja absorvida. Que irônico, se me recuso a tamanho esforço, apenas juntar fragmentos de uma palavra qualquer, como posso eu juntar meus próprios cacos? A pergunta veio como uma bomba, uma bomba que estava programada, mas não com aqueles números pintados de sangue gritando, correndo em ordem decrescente até chegar ao último segundo antes do caos. A bomba seguia ao contrário, porém a cor de sangue parecia mais viva, intensa, que seguia contando desde os segundos até as horas, talvez já marcassem os dias que se passaram, que eu odiava e penso que poderia ter prolongado mais. Foi inevitável, imprevisível. A bomba explodiu. Acidentalmente apertei o botão vermelho, cortei o cabo errado. O efeito da explosão foi imediato, e tudo o que havia dentro de mim sentiu todo o impacto. Foi como um ataque de guerra com um único objetivo traçado, executado. Destruição, desespero. As faíscas se espalharam, a poeira e tudo que há de mal ainda estava de pé, subiu e desceu.
(...) Se antes, dentro de mim só existia uma pequena e única luz em meio a tamanho breu, agora... agora não existe mais nada, nada além de um espaço como a máscara do desespero, uma cena trágica que despertaria água no meio do sertão, lágimas em olhos desidratados, quentura numa pedra de gelo em volta do coração. (...) Que coração? O choro doía, doía a cada lágrima que saía, uma seguida da outra, e os olhos inchados clamavam para que estancassem aquele sangramento. A vontade de vomitar veio. Me curvei, suei, senti a barriga se contorcer e jogar o que tinha para fora. Nada. Não tinha nada desde muito tempo. Desde muito tempo soube muito pouco e do nada, nada resta, vai muito além da linha do vazio.
Tontura e dor. (...) Gostaria agora de um porre, o pior que tivesse, queria jogar álcool aqui dentro e incendiar os entulhos, os destroços. Não quero mais restos, não quero construir algo em cima de merda, de um terreno esburacado, pois de buracos já basta o meu.
(...) A legião de mães devem estar procurando seus brotinhos, seus frutos, seus guris que ainda nada sabem dessa vida, para tomar banho, tirar a lama, passar remédio em seus joelhos e mãos raladas, acariciá-los e depois pôr na mesa de toalha florida, suas guloseimas pra repor as energias e pinotar pintando o pôr-do-sol. Senti inveja. Ninguém me daria um banho, tiraria meu suor, me ofereceria um café preto e forte. (...) Ninguém se disponibilizaria de boa vontade e colocaria remédio e assopraria para não arder e que fosse me falar: "Calma, já já fica melhor, cura". Ninguém limparia minhas feridas ou faria um curativo. Mas eu não podia deixar o sangue grudar e secar em cima, não posso deixar a ferida aberta. (...) Eu mesma farei tudo isso, e em seguida dormirei em panos limpos que cheirem a luz, ao nascer do sol. Cairei para que me levante. Deu-se início a reconstrução.

Maressa Fauzia

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